Me sentei à janela. Dividida pela sombra e os primeiros raios de luz que chegavam ao dia. Me sentei ali, com uma xícara de café e fumando sem tragar aquela fumaça que vinha do Lucky Strike aceso no cinzeiro. A cada gole, a esperança de ser sugada para dentro daquela xícara de líquido preto, como Alice no país das maravilhas, como se estivesse caindo em um abismo negro de líquido e então morresse. Então só sentei ali. Tudo passava, menos o dia. O dia passava, menos tudo. Até pensei que fosse ficar presa naquela manhã para sempre. Sentada ali eu não via a hora passar, nem sabia que horas eram, se haviam horas, se já estava na hora de levantar e ir para outro lugar.
Não tem graça quando seus deveres estão cumpridos, quando não se tem deveres a cumprir. Existe a vida que você cria com alguém, ainda que não tenha esse alguém. E existe a vida que você tem, sozinha do lado de lá. Toda a vida que você criou com alguém, vem outro alguém e toma para si.
Pensei nisso pela manhã. Sentindo metade do meu corpo sob o Sol se transformar numa carne mal passada. Me levantei e fui para o sofá, com aquela sensação de já ter lido livros demais e visto filmes demais. Uma sensação falsa para a falta de vontade de pegar qualquer outro livro ou filme e tomar um rumo na vida com ele. As pessoas só escrevem quando se sentem mal na esperança de sair algo que preste. A nossa dor pode se tornar uma boa obra literária ou um lixo jogado em qualquer canto do peito ou papel fedendo mofo.
Bati os olhos no relógio, desviei e então olhei-o novamente, não estava com um horário anterior guardado na cabeça para comparar com este e então exclamar o quanto já estava tarde. Esta era a primeira vez que havia olhado o relógio naquele dia, a primeira vez em anos que me lembrava de que havia um relógio em casa e que havia horas e tempo e que ele passava e que coisas precisavam ser feitas durante esse tempo. Rolei o cigarro no cinzeiro fazendo zig zag com a fumaça branca. Eu olhava na xícara vazia de café. Com inveja do cigarro que demorava a apagar o esmaguei contra o cinzeiro, como eu conseguia apagar por dentro antes de um maldito cigarro. Ele me mata e eu o mato, sorri e me levantei para mais uma vez preencher um vazio existencial com mais uma xícara de café. Eu já não tinha com quem partilhar do dia, dos filmes ruins que assisti, dos livros que gostaria de ler. Mas estava satisfeita com minha companhia.
Fui até a varanda com aquele sorriso conformado, olhando para onde o vento toca e arrasta. Uma manhã fria com um Sol tão quente. E é incrível como eles se completam melhor como qualquer outra combinação. Não melhor que Sol e Chuva, Chuva e Sol.
Uma dor se revirava no estômago. Os médicos chamam de gastrite, eu chamo de decepção, má alimentação e insatisfação. Achei que essas coisas refletissem no nosso corpo de outra forma, mas estou quase preferindo que seja como coices no estômago mesmo.
Já anoiteceu e o cigarro talvez estivesse tão aceso quanto eu, se não o tivesse apagado. O Sol já não discute com o vento, ele agora é quem manda sob as escuras. As árvores agora negras dançavam sob o lilás do céu. Joguei meu casaco nos ombros e saí por aí. Com meus deveres cumpridos, achei desnecessário me dar mais algum, não marquei compromisso, nem me dei afazeres. Saí por aí noite à fora com as mãos socadas nos bolsos, deslizando a sola dos sapatos no asfalto úmido do sereno e seguindo as luzes coloridas da rua por aí.
É natal, uma pena aqui não nevar. Desde criança me acostumei com esse clima natalino dos filmes, com luzes coloridas, um barbudo com um saco gigante de brinquedos e neve. Mas para mim estava tudo bem, estava tudo bem do jeito que estava. A solidão era um dos deveres a ser cumpridos, um dever que não lembro de ter me dado mas venho cumprido como ninguém, e bastante satisfeita. Talvez passasse no mercado para comprar um vinho e algumas batatas fritas congeladas. No natal, a televisão é sempre a mesma coisa: desenhos, séries, filmes e até assassinatos em homenagem ao natal. Algumas famílias que não se viam desde o início do ano ou que não se gostavam muito estariam se abraçando e passando tigelas de saladas e carne assada uns para os outros agora.
Sabe, talvez a solidão não fosse tão ruim, olhando pelo lado bom, não importasse a ocasião, ainda é uma companhia sincera.