sábado, 15 de agosto de 2015

Rotina


28 de Fevereiro de 2013

Hoje acordei como quem resolveu viver, essa ideia indefinível que é viver. Depois de anos me deixando levar pelos resultados das pesquisas que diziam que arrumar a cama ao se levantar fazia mal a saúde, hoje estiquei o lençol, desamarrotei os travesseiros e ajeitei os chinelos no pé da cama. Encostei na entrada do quarto com uma boa xícara de café e observei a cama feita. Puxei de leve o lençol, apalpei os travesseiros e recostei na cama novamente. Gosto de acordar antes do despertador gritar na minha orelha como uma vadia, nunca gostei de ninguém me acelerando, ainda mais algo tão medíocre como um despertador. Ainda era noite, fresca e gostosa para se conhecer o mundo fora do horário comercial. Coloquei a xícara de canto e apoiei as mãos atrás da cabeça. 

Sabe que uma cama desfeita traz tantas lembranças quanto um álbum de fotografias? Às vezes de momentos que nem chegou a ter na vida. Um alguém com quem partilhou momentos importantes, a própria vida ou uma simples noite de sexo. Cada uma dessas coisas podem ser intensas de maneiras diferentes para as pessoas, mas como eu sempre fui um cara muito intenso. Logo a mulher com quem tive uma noite de sexo, veio a se tornar a mesma com quem partilhei momentos importantes e passei a partilhar de minha própria vida. Meus medos, meus receios, meus hábitos, odores e pensamentos. Hoje só resta partilhar do Montblanc que eu comprava pra ela usar pra mim, que impregnou como uma maldição em todas as roupas de cama da casa, dos estofados, das minhas camisas. 

Terminei aquele café lá no banho mesmo. Quase esfriou, esquecido e trocado por meras lembranças. Encostei as mãos na parede e deixei aquela água quente descer pelas minhas costas, quente como o inferno que a gente cria na mente da gente, como o ardor do coração, como a água que faz o café de manhã. Sentei de novo na beira daquela cama semi desfeita, bem feita como quem desfez, calcei os sapatos e levantei como quem estava sendo puxado de volta com todas as forças. Ajeitei o cabelo na frente do espelho, peguei minha mochila e saí.

Trabalhava num fundo de uma Vila na Consolação. As partes mais gratificantes do dia eram as saídas em serviço pro cuzão que pagava meu salário. Aquela correria no dia e poder fumar meu cigarro enquanto fingia que colocava os pensamentos no lugar. Esbarrando em pessoas jogadas na rua, gente que não tem uma rotina ou uma vida pra planejar. Gente que não sabe se vai tomar um café quente quando acordar. Gente que não tem uma cama feita para se desfazer e se remontar. Enfio a mão no bolso e dou todas as moedas que tenho, sem olhar valor.  - Deus abençoe - disse o senhor, sem nem ao mesmo saber o quanto lhe dei, só sendo grato por ato. Abri um sorriso e acenei com a cabeça. Nunca parei para decidir crença, acho que a vida é muito mais do que se apoiar em figuras religiosas e esperar que elas joguem tudo o que você quer do céu, que é no que a maioria das pessoas acreditam. Ou acreditar que alguém me fará perder dinheiro, morrer ou sofrer de qualquer outra forma só por eu ter me masturbado pensando na vizinha cujo marido não faz jus. Não desacredito de forças superiores, só acho antiético me debruçar sobre elas para que me carreguem.

Voltei para o escritório mais rápido do que planejava, o dia passou arrastado mas ainda assim pulei o horário de almoço para adiantar a papelada. Sempre arrancando sorriso e satisfação daquele cuzão que ganhava em cima do meu trabalho mas que não me pagava o que eu trabalhava. Suspirei como quem esperava a morte quando passei a chave na porta, aliviado. Suportando meio dia de cada vez. Me despedi dos participantes que sobraram dos meus dias rotineiros, cobrindo um buraco ou outro aqui com sorrisos e "bom dias". Subi a rua e atravessei para pegar o ônibus. Muitas pessoas com feições como a minha. Esgotada, infeliz, insatisfeita e com muitos pensamentos e dívidas para acertar. A mesma mulher que fazia e desfazia minha cama todos os dias pegava ônibus comigo na volta. Foi aqui que a conheci, me pedindo um isqueiro emprestado. Por um dia, dois, três, no ponto de ônibus, depois do sexo, na cama desfeita. Lá estava ela de novo, como desde a última vez. Feições cansadas e rotineiras, mas viva e linda. Mulher e agora mãe. Entrelaçada por outros braços, que antes eram os meus. Também partilhávamos de estresse. Ela deitava em meu peito, enquanto a segurava, exausta, esperando um coletivo para nos espremermos em cantos até o nosso destino, nosso lar, quente como nossa primeira refeição decente, nosso banho quente, quente como o café que ela fazia todas as manhãs, quente como ficava seu lado da cama, como era seu corpo. Ela tem outro alguém para esvaziar sua mente no trajeto para casa, para aconchegá-la nos braços. Alguém para elogiar a barba por fazer, o corte de cabelo. Alguém para brigar por ciúmes e insegurança, para esquentar o café de manhã, arrumar e desfazer a cama. Alguém para esquentar seu corpo.

Sempre pego ônibus depois dela, nem que eu perca todos. No começo do fim, um coletivo era a única coisa que ainda partilhávamos. Hoje é o cheiro dela que não sai da minha casa.

[Ouvindo Radiohead - Codex]

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