terça-feira, 28 de agosto de 2018

Meu caro amigo...



As poltronas estão a descascar no mesmo ritmo em que surgem as rugas no rosto estressado e desgastado. A compulsão por comprar livros resultou em estantes cheias de informações e muita poeira. Poeiras que cobrem títulos e subtítulos. Alguns com marcas de dedos em pró de uma pesquisa ou a vontade de esticar as pernas e folhear enquanto conhecimento entram pelos olhos e estacionam na mente e a música pelos ouvidos acalentando a alma.

Nesses tempos em que vivemos, descansar significa uma boa viagem, uma prosa com os mais chegados, encher três copos com a mesma garrafa, se aconchegar em uma pele quente que busca o refúgio recíproco. Eu tiro por descansar qualquer coisa que não me faça sentir o desesperador aperto no peito que causa vertigem e náuseas. Antes eu achava que a dor da vida fazia com que eu me sentisse vivo e que eu precisaria daquilo para sempre para me manter em pé. Hoje, como castigo o corpo estremece só de pensar em sentir dor novamente. É igual a aversão ao cheiro da vodka depois de um porre. Está tudo bem por aqui, obrigada.

A vida não bate em ninguém, ela é só uma mãe assistindo o filho pequeno se jogar e se debater no chão do mercado querendo doce. Nós somos a criança que em nossa mentalidade imatura e sem compreensão julgamos aquela mãe estar sendo dura conosco. A verdade é que ela só está ali olhando pra nós e pensando "pobre coitado, ainda é uma criança". Depois de velho, em determinados momentos agimos como essa criança, que acha que a mãe tem que ter pena da gente. Que ela maltrata e bate quando somos nós que nos debatemos no chão, nos torturamos e choramos.

Paz para alguns é deitar a cabeça no travesseiro com a consciência limpa. Sucesso para outros é subir de cargo na empresa. Prazer pode estar em interromper a rota para casa e assistir aquele músico de rua tocar seu instrumento gasto de longas aventuras debaixo de chuva e com tapas de vento gelado no rosto.

Hoje na rota para o trabalho, ficou na mente a imagem do casal de idosos que passaram por mim de manhã, risonhos como quem se desapegaram de obrigações e responsabilidades sociais e só querem saber um do outro. De levar comida para os gatos e passarinhos. De mandar a receita para a vizinha daquele bolo da semana passada que ela cobra todos os dias. Pegar jornal no metrô e chegar cedo na feira da madrugada para pegar as frutas e verduras mais bonitas e maduras. Regar todas as plantas e assistir o futebol na poltrona velha.

Hoje aprendi com a Rosa - uma nova aluna minha de 65 anos - como deduzir se uma pessoa gosta de ser referida como "senhora" ou "você" pela aparência, o vocabulário e a vestimenta. Foi interessante, Rosa, não sabia que da mesma forma que "senhora" é uma referência respeitosa, ela pode ser invasiva. Vou me atentar a este aprendizado e praticá-lo.

Enquanto escrevo, os dias passam como filmes na minha mente. Todos eles. Alguns com mais imagens, outros parecendo filmes de videocassete mofado. Uns mais nítidos que outros. Isso conforme tempo e relevância.

É bastante coisa, meu caro amigo. Muito se observa quando está só consigo. Você e você. Solidão é um termo que assola pessoas, como um bicho papão. Mas não saber viver consigo mesmo é igual viver em um relacionamento desgastado pelo estresse, a rotina, a mesmice e confusões. Não se entende mais o outro, não parece ser a mesma pessoa que você conheceu, dormiu, fez amor e dividiu o arroz da mesma panela.

O caminho trilhado corretamente deve se repetir na ida e na volta. Mas se não prestaste atenção na rota, não existe GPS para essa trilha, sabe? Onde não ir é tão importante saber quanto onde chegar. Esse trajeto não é aquele clichê da vida que os Coachings comentam nos treinamentos junto com um monte de estórias que eles montam entre eles pra fazer você entender o comportamento comercial com fábulas. Eu estou falando da trilha bagunçada e sem marcas de migalhas de pão que vão entre sua mente e seu coração. Já sabe de onde desviar e qual caminho não pegar para não atrapalhar seu trajeto?

Você define o que lhe traz paz. Pode ser ouvir uma música da época em que seus pais saiam para comer cachorro quente juntos. Assistir aquele senhor de idade preparar flores para vender na feira do Bom Retiro. Brincar com cachorros. Ler ou dormir até o colchão ficar marcado com as curvas do seu corpo. Pode ser beber até se esquecer de quem é. Sentir o cheiro do mar. Sucesso pode ser conseguir completar aquela coleção de CD do Zeca Pagodinho, conseguir chegar no mercado antes dele fechar, ou pegar um ônibus cansado e ter lugar pra sentar. O prazer pode estar em saborear um pastel da feira com óleo de três finais de semana atrás, alguém te dar o livro que faltava pra sua coleção ou ser pego de surpresa no meio da noite com quem lhe importa enviando suas músicas favoritas.

Aproveita deste para se aconchegar na sua poltrona velha também, meu rapaz. Aprender sobre si mesmo, o que lhe agrada e traz paz. Este é o maior aprendizado e o melhor e mais honesto atalho para a rota final.

[Johann Strauss II - The Blue Danube ♪]

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